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A técnica e o homem

 

A técnica e o homem

 

O que é a técnica? Qual o papel da técnica em nossa civilização?

A questão da técnica atormenta as mentes e os corações de diversos indivíduos. Sua problemática leva ao gasto de energia, tempo e recursos em busca de compreender seu estatuto social, histórico e ôntico. Existem aqueles que pensam ser a técnica um grande mal, mal este que veio para oprimir ou esmagar a humanidade. Neste sentido, podemos falar do terrorista Theodore John Kaczynski, mais conhecido como “unabomber”. Kaczynski via na técnica a degradação do homem, a perda de sua vitalidade pulsional. Pela técnica, segundo ele, o homem constituiria uma espécie de “sub-cultura”, com criações inúteis, como a ciência e a arte. Kaczynski via a técnica como um arcabouço ôntico que formataria a vivência humana, o aprisionando.

Outro crítico da técnica, mas em uma perspectiva diferente, foi Heidegger. Heidegger via a técnica, assim como Kaczynski, como um arcabouço ôntico a enredar o homem. Contudo, segundo ele, a origem da técnica estaria enraizada no impulso metafísico do homem de dominação da natureza, em seus diversos aspectos, e do esquecimento da problemática em torno do ser. Na verdade, de acordo com esta posição, a técnica seria a criação mais recente do impulso metafísico de subjugação do ser pelo homem.

Ainda entre os que vêem a técnica de modo negativo, existem aqueles que creditam a ela um suposto estado de opressão social, instrumento de desumanização, em que o homem teria se tornado em “apêndice da máquina”.  Neste caso, a técnica seria um meio de “opressão social” e “alienação”.

Estas posições são, essencialmente, equivocadas. Cada uma a seu modo. No caso das posições de Heidegger e Kaczynski existe um aspecto correto, do qual se falará mais abaixo. Antes, é necessário apresentar, em linhas gerais, a posição de um autor que mais se aproxima de uma análise condizente sobre a técnica. Este autor é Álvaro Vieira Pinto.

Para analisar a questão da técnica, Álvaro Vieira escreveu a obra intitulada “o conceito de tecnologia”. Nesta obra, Álvaro Vieira vai contra as posições filosóficas radicalmente pessimistas sobre a técnica. Um dos principais alvos de suas críticas é justamente Heidegger. Álvaro Vieira critica justamente a análise da técnica baseada em pré-concepções de fundo especulativo, como é o caso de Heidegger. No lugar, propõe que a técnica seja analisada a partir de um viés “ontológico”, de seu enraizamento ôntico na sociabilidade. Tal como Lukács, Álvaro Vieira concebe o processo de instauração e desenvolvimento da sociabilidade a partir do trabalho. É pelo trabalho, que deve ser entendido em seu sentido amplo, que a sociabilidade é constituída pelo homem e posta adiante. A partir desta posição, Álvaro Vieira argumenta que o trabalho leva ao desenvolvimento de técnicas auxiliativas, as quais se constituem como instrumentos para o homem em suas atividades. Assim surge a técnica. A técnica é, neste sentido, uma forma operacional da sociabilidade, pela qual esta conduz seu processo de desenvolvimento, e, como tal,  a técnica é instaurada pelo trabalho, estando sempre sobre seu controle. Ao contrário de Kaczynski e de Heidegger, Álvaro Vieira não vê a técnica como algo extrínseco à sociabilidade, e que poderia vir a oprimi-la. Ao contrário, a técnica sempre está presente na sociabilidade, não havendo sociabilidade, vale dizer, homem, sem técnica. É esta posição que o levará a questionar a ideia de “era tecnológica”, conceito que é usado por alguns para designar nossa época atual em oposição à eras passadas. Deste modo, Álvaro Vieira concebe a técnica não de modo negativo, como opressora, mas sim de modo positivo, como impulsionadora da sociabilidade. A técnica é um instrumento edificador do homem, não destrutor. Isto não quer dizer que a técnica não possua problemas. Ela os tem, mas estes problemas se dão na questão do uso e da produção da técnica pelos povos. Dentro do espírito nacionalista do ISEB, Álvaro Vieira vê o uso distorcido da técnica quando esta é de produção exclusiva dos países ditos “desenvolvidos”, enquanto os demais seriam apenas “receptores” do que tiver sido produzido nestes países. Do mesmo modo, a técnica traria prejuízos pela relação extrínseca do trabalhador com ela, em que ele a operaria, mas sem nada entender de seu funcionamento elementar.

A análise de Álvaro Vieira Pinto coloca a questão da técnica em seu devido terreno: no terreno da ônticidade social. A que se entender a técnica a partir de seu enraizamento na sociabilidade, a partir do papel que ela ocupa aí. Álvaro Vieira mostra que a técnica possui a capacidade de ser um dos operadores da impulsão da sociabilidade em seu desenvolvimento. A técnica aparece como um instrumento de preservação e impulsão da vida humana, como tal, um instrumento essencial na dinamicidade da vivência humana. Isto se contrapõe frontalmente à negação da cultura de Kaczynski, e ao anti-humanismo de Heidegger. A posição deste último, especificamente, pode ser entendida na relação com seu ódio à autonomia humana em relação à autarquia mítica de seu Sein.

Contudo, estes dois autores compreenderam algo que escapou a Álvaro Vieira: o entendimento da técnica moderna como arcabouço ôntico. Nisso eles estavam corretos. Álvaro Vieira entreve a técnica, fundamentalmente, como instrumento. É isto que o faz ver haver entre uma enxada e um carro uma diferença apenas de grau de desenvolvimento técnico. Mas esta posição não pode se sustentar. A técnica moderna não é meramente um instrumento. Existe uma ruptura profunda entre a técnica antiga, pré revolução industrial, e a moderna. A técnica antiga pode ser, essencialmente, considerada como “instrumento”. Isto porque seu papel era o de ser auxiliar ôntico ao esforço de trabalho do homem. Existe a enxada, mas a enxada é apenas um instrumento, quem faz o esforço é o homem. Existe o moedor de café, mas quem o coloca a funcionar é a energia braçal do homem. Na técnica antiga o homem está preso ao instrumento, e está preso a ele justamente por ser ele o executor da tarefa, todo o dispêndio de energia parte dele. Neste sentido, é na técnica antiga que podemos falar do homem como “apêndice da máquina”, pois lá o homem era requerido junto a ela, exaurindo suas energias no esforço. Na técnica moderna não é isso o que acontece. A técnica antiga trabalhava com o homem, a técnica moderna trabalha para o homem. Por isso a diferença. Na técnica moderna o homem não é requerido para o desempenho da função, exatamente porque é a técnica quem faz a função no lugar dele. Assim como em épocas passadas haviam servos que libertavam seus senhores do trabalho exercendo-o em seu lugar, hoje a técnica liberta o homem do trabalho exercendo-o em seu lugar. A máquina de café faz o café para o homem, o computador calcula para o homem, o correio eletrônico substitui  o mensageiro, o carro substitui os animais e outros homens que eram postos a carregar os indivíduos. Pela técnica moderna o homem é libertado. E essa é a essência da técnica moderna enquanto arcabouço ôntico: a libertação do homem, a liberação de suas forças, que não precisam mais ser dissipadas em tarefas árduas, e podem ser direcionadas para outras atividades. Ao mesmo tempo, a técnica proporciona a maximização da produção de bens para a humanidade, garantindo sua vida materialmente confortável e diminuindo os acasos da natureza que ameaçam sua sobrevivência. Não estava equivocado Kaczynski ao ver na técnica a origem da cultura através do deslocamento das forças humanas do trabalho árduo para o trabalho “espiritual”. Se pudermos dar uma definição ainda mais precisa para a essência da técnica moderna, esta seria: a técnica  moderna é a liberdade do homem.

Não nos esquecemos de analisar a terceira posição negativa frente à técnica, a que vê a técnica como um fator de “opressão social”. Ora, este é um grupo profundamente equivocado. Sua conclusão sobre a técnica parte de uma análise superficial sobre a sociabilidade e o estado atual desta sociabilidade. Esquecem-se de que atualmente a sociabilidade é dominada pelo capital. Muitas vezes, os que analisam a partir deste ponto de vista se remetem ao capital, mas suas análise são sempre parciais. Sempre se remetem a um ou outro grupo do capital (no caso, os oligopólios tecnológicos) como causadores da opressão social, ou então, como faz Álvaro Vieira, à ação impositiva de países adiantados. Por sua análise superficial, acabam se tornando uma espécie de lúdicos tardios, que vêem nos artefatos técnicos o mal que aflige o mundo. Na verdade, trocam o carcereiro pelas barras de metal, e dizem ser as barras que aprisionam e não o carcereiro. Na verdade, o “mal” que aflige o mundo é o capital. O capital oprime a sociabilidade, pondo-a a seu serviço. No capitalismo, a sociabilidade, a humanidade, é serva do capital. O capital, com suas imposições, restringe o desenvolvimento da humanidade, isto porque esta não pode se ocupar de si mesma, ela deve se ocupar da reprodução do capital. O capital, em seu aspecto primacialmente revolucionário, transforma a sociabilidade e a eleva a um novo patamar de prosperidade. Contudo, barra a amplificação desta prosperidade e se apodera de toda energia social para seus próprios fins. Tal como um vampiro, o capital suga as forças vitais da humanidade, barrando seu desenvolvimento e a deixando em um grau de penúria espiritual profundo. Isto porque as energias humanas são todas direcionadas para ele, não restando lugar para a dedicação para mais nada. O capital ocupa todos os espaços da vida social. Em sua ubiquidade se presentifica a todos. Não há liberdade sobre a égide do capital. A humanidade é sua escrava. A sociabilidade é oprimida por ele. Sendo parte da sociabilidade, a técnica compartilha o mesmo destino. A técnica é também oprimida pelo capital, escravizada por este. No capitalismo, a técnica é impedida de exercer plenamente sua essência libertadora, e, ao contrário, tem seu ser torcido e torturado pelo capital para se voltar contra o homem. Deste modo, a técnica se torna meio de opressão.  Em sua condição oprimida, a técnica é conduzida a uma terrível contradição: de um lado ela é a libertação do homem, mas de outro ela se torna opressora do homem. Tal contradição, contudo, não é unicamente da técnica. Todo o capitalismo é transpassado por ele. De um lado o capitalismo constitui meios para a liberdade humana, como a técnica moderna, por exemplo, mas de outro os instrumentaliza para sua ação opressiva. Em outras palavras, a contradição entre condições para a liberdade e opressão é algo que transpassa o capitalismo de ponta a ponta, isto porque o capitalismo cria as condições para a prosperidade e para a liberdade humana, mas, ao mesmo tempo, se apossa destas condições para escravizar a humanidade. A própria humanidade é posta a seu serviço, oprimindo a si mesma, o ser humano oprime o ser humano, a humanidade se volta contra si mesma. A técnica é só um dos elementos que funcionam como meio desta opressão, mas isto não porque a técnica seja essencialmente opressora, do mesmo modo que a humanidade não é essencialmente opressora, mas sim porque a própria técnica se encontra oprimida e escravizada pelo capital.Deste modo, são equivocadas as posições que vêem a técnica como a opressora. O opressor é outro.

Somente livre do capital a técnica poderá realizar plenamente sua essência libertadora.Neste tipo de sociedade, a técnica propiciará ao ser humano a libertação completa de suas forças para a construção infinita da vida superior, “espiritual”, garantindo a maximização da prosperidade material e a proteção do homem frente às intempéries naturais, sem a necessidade da exploração do trabalho humano. A técnica moderna é a chave da autonomia e da liberdade do homem, e, portanto, sua verdadeira essência é a liberdade.

 

 

 

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